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Quando a bruxa se escolhe: por que ser dona de si é um ato político
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Quando a bruxa se escolhe: por que ser dona de si é um ato político

Este episódio tem apoio da leitura do livro de Silvia Frederici, “O Calibã e a Bruxa”

Falar de autocuidado sem falar de política é pintar com aquarela o que nasceu do fogo.

Neste texto, entrelaço os fios do tempo, do corpo e da espiritualidade para refletir por que ser dona de si é mais do que uma escolha pessoal — é um grito ancestral por liberdade.

Uma leitura para quem quer viver no próprio ritmo e transformar autocuidado em resistência cotidiana.

Ser dona de si é um ato político.

A gente ouve tanto falar de autoconhecimento que, às vezes, o conceito parece até esvaziado. Fica raso. Fica preso na superfície de “se conhecer” sem atravessar as camadas mais profundas — aquelas em que percebemos que habitar o próprio corpo, honrar a própria história e escolher o próprio caminho é também um gesto político.

Mas se reconhecer soberana de si é diretamente falar sobre política, porque vivemos num sistema que não foi feito para a nossa liberdade. Uma sociedade projetada por homens, para homens. O calendário que seguimos é masculino. O tempo que nos atravessa é masculino. As religiões dominantes são patriarcais. Até mesmo caminhos espirituais que se dizem devotos da Deusa, como a Wicca, muitas vezes orbitam ao redor do masculino. Afinal, a própria Wicca foi criada por um homem: Gerald Gardner.

Nosso corpo foi, historicamente, sequestrado — transformado em máquina de trabalho, em instrumento de reprodução, em moeda de troca. Quando escolhemos nos olhar com verdade, nos cuidar com intenção e nos reconectar com a nossa essência, rompemos com esse enredo. Voltamos para nós. E isso assusta quem lucra com a nossa ausência de si.

Não querer ter filhos, por exemplo, é profundamente anticapitalista. O sistema se alimenta da nossa maternidade compulsória para manter a engrenagem funcionando: mais corpos, mais força de trabalho, menos questionamento.

Durante os séculos XV e XVI, quando os julgamentos por bruxaria começaram a se espalhar, o que se via ali era a criminalização de uma espiritualidade feminina, autônoma, ancestral. Pela primeira vez, uma heresia inteiramente feminina foi registrada: um “culto” que adorava o demônio — ou seja, um grupo de mulheres que ousava se reunir, cuidar uma das outras, confiar em sua própria conexão com o invisível. A resposta do Estado foi brutal.

Na Europa, bem antes do capitalismo industrial, o Estado já articulava políticas para garantir o crescimento populacional. Na França e na Inglaterra, leis bonificavam casamentos e puniam o celibato, resgatando práticas do Império Romano. A família passou a ser tratada como unidade essencial do sistema: era ali que se garantiam heranças e se gestavam futuros trabalhadores. A sexualidade feminina foi vigiada, a gravidez passou a ser registrada, e o aborto se tornou um crime punido com violência.

As mulheres — nossas ancestrais — conheciam métodos contraceptivos naturais. Ervas, infusões, supositórios vaginais que provocavam menstruação ou evitavam a concepção. Esse saber era passado de mulher para mulher, de bruxa para bruxa. Mas foi arrancado de nós. Criminalizado. Invisibilizado.

Nos séculos seguintes, uma mulher solteira e grávida podia ser presa, vigiada, punida. Hospedar uma delas era ilegal. O corpo feminino deixou de ser seu para ser do Estado. E, até hoje, vemos esse eco nas discussões sobre aborto — onde raramente se fala da vida da mulher. A pauta continua sendo o controle. Continua sendo o silenciamento.

Afinal, como dizia a canção feminista italiana “Aborto di Stato”, das mulheres em luta na cidade de Pádua: fomos ensinadas a “produzir filhos para o Estado”. A maternidade forçada, a romantização da entrega absoluta, a ideia de que “nascer para cuidar” é destino — tudo isso faz parte da domesticação que nos afasta da nossa essência selvagem, intuitiva, livre.

Recuperar o poder sobre o próprio corpo é reconquistar o território da alma. Reivindicar o direito de se ouvir, de se cuidar, de fazer escolhas que não respondem ao script social.

Ser dona de si é ser subversiva. É ser livre. É ser inteira.

Te fizeram acreditar que tudo gira em torno do homem.

Das religiões que já estudei nos últimos dez anos, quase todas envolviam um deus central e a história sendo moldada em volta da sua vida-morte-vida. Do deus da Wicca ao deus-Jesus. Mesmo que a mulher estivesse ali, no fim da narrativa ela era apenas uma coadjuvante. A mãe, a esposa, a filha, a avó. Essa mesma mulher que é a responsável por dar vida a este tal deus masculino que de tudo sabe, tudo vê, tudo pode enquanto a criadora por trás de tudo pode “apenas” dar a vida.

Então isso se traduz na nossa sociedade e realidade.

A mulher, o ser mais importante desta narrativa, se torna um balde no qual a essência de tudo é carregada e mesmo nas histórias matriarcais ela reduzida a este papel de cuidado.

Então o homem cria um calendário que respeita os ciclos masculinos e monta uma sociedade focada no seu perfil de produtividade.

O calendário que seguimos hoje — aquele que organiza nossos dias, semanas, meses e anos — tem nome, sobrenome e dono: calendário gregoriano, decretado pelo Papa Gregório XIII no século XVI. Ele nasceu do ventre da Igreja Católica para ajustar o tempo às necessidades de um império espiritual e político que se expandia pelo mundo com sangue, cruz e espada.

Mas a história começa antes.

Antes de Gregório, havia o calendário juliano, instaurado por Júlio César, o imperador romano. Ambos são variações de um mesmo esforço: padronizar o tempo, encaixá-lo em caixas retangulares, cortar seus ciclos naturais e submetê-lo à lógica da produtividade e da dominação.

E adivinha? Nenhum deles foi criado com o corpo feminino em mente.

O calendário gregoriano define o ano com 365 dias divididos em 12 meses, organiza as semanas em ciclos de 7 dias, define feriados com base em dogmas cristãos e rege até hoje como trabalhamos, descansamos, celebramos e adoecemos.

É um tempo linear, previsível e masculino — criado para manter o controle.

Mas o corpo feminino não segue essa linha reta. Ele dança em círculos.

Ele pulsa em ritmos lunares, em 28 dias, em quatro fases que não se alinham com a rigidez da agenda capitalista.

Quando sangramos, sangramos fora do tempo oficial. Quando ovulamos, não há feriado. Quando precisamos recolher, a segunda-feira não espera. E é assim que vamos sendo educadas a nos odiar: porque não conseguimos caber no relógio deles.

Esse tempo que seguimos não foi feito para o nosso bem-estar. Foi feito para nos controlar.

Para transformar a vida em produção. O descanso em luxo. O ciclo em desordem.

O natural em problema.

Mas há um outro tempo — um tempo que não se mede em relógios, mas em respiros, luas e sensações. Um tempo que não exige produtividade, mas presença. Esse é o tempo da Terra. O tempo da bruxa. O tempo da mulher que se lembra.

Quando você sente que o dia está estranho, que o mês voou, que a semana te esmagou… talvez não seja você. Talvez seja esse tempo colonizado que te empurra pra longe do seu ritmo natural.

E aí entra o convite:

E se você começasse a se guiar por dentro, em vez de por fora?

E se seu ciclo fosse seu calendário?

E se sua lua fosse seu tempo sagrado?

E se, em vez de correr contra o tempo, você voltasse a dançar com ele?

O calendário gregoriano ainda nos rege, sim.

Mas não nos define.

O nosso tempo começa quando a gente se escuta.

E a mulher permanece ali, em segundo plano, gestando a si e aos outros até seu último respiro. A maioria, só podendo exercer dois papéis durante sua vida: a da mãe e a da anciã. A infância de muitas parece um sopro enquanto a juventude passa tão rápido quanto um cavalo selvagem, e quando aparecem os primeiros cabelos brancos, pronto, é o fim da linha. Ela chegou ao limite do que podia querer ou fazer.

Nosso tempo é outro.

Enquanto o mundo gira obedecendo ao ritmo do relógio, nós, mulheres, somos feitas de luas. De marés. De um tempo que não se mede em horas, mas em sensações. Emoções. Fluxos. Nos ensinaram a nos organizar como se fôssemos máquinas: levantar cedo, produzir, render, repetir. Mas essa estrutura linear, estável e previsível foi desenhada para corpos masculinos.

O corpo do homem funciona em um ciclo hormonal de 24 horas, como o nascer e o pôr do sol. Já o nosso, feminino, dança em um ritmo completamente diferente: um ciclo de aproximadamente 28 dias, em sintonia com a Lua e com as águas dentro de nós.

No corpo do homem, os principais hormônios seguem um ritmo circadiano. Ao longo do dia, há um pico de testosterona logo pela manhã — que sustenta energia, foco e força física. Com o passar das horas, esse nível vai caindo até a noite, quando o corpo pede descanso. No dia seguinte, o ciclo recomeça. Simples. Direto. Repetitivo. Ideal para uma rotina constante.

Foi com base nesse ritmo que se construíram os horários escolares, o expediente de trabalho, os picos de produtividade exigidos pelo sistema. Mas... e os nossos ciclos? O corpo feminino segue um ritmo infradiano. Um ciclo mais longo, mais complexo, mais profundo. Ele é guiado pelas flutuações dos nossos hormônios — o estrogênio, a progesterona, o hormônio folículo-estimulante e o hormônio luteinizante — e se divide em quatro fases, cada uma com uma energia específica, um convite diferente, uma forma de estar no mundo. Quando sangramos, nosso corpo está em seu momento de recolhimento. A energia está mais baixa. É um chamado para silenciar, descansar, escutar. Aqui, a sabedoria é intuitiva, ancestral. O corpo nos convida a pausar e acessar uma escuta mais fina — de nós para nós. Após a menstruação, os níveis de estrogênio sobem e sentimos um florescer interno. Voltamos a ter mais disposição, criatividade, abertura para o novo. É o momento de plantar ideias, iniciar projetos, experimentar possibilidades.

A ovulação traz um pico de vitalidade. Nos sentimos mais sociais, comunicativas, magnéticas. É uma fase naturalmente voltada para o outro — para a troca, para o compartilhar. Mas também pode ser o momento mais intenso, e é preciso atenção para não se desconectar de si ao querer atender ao mundo.

Depois da ovulação, a progesterona sobe e o corpo se prepara para o possível acolhimento de uma nova vida. Mesmo que não estejamos tentando engravidar, essa energia de recolhimento começa a retornar. Ficamos mais sensíveis, introspectivas, talvez irritadas — o corpo está pedindo verdade, autenticidade, limites. É tempo de cuidar das emoções antes que o novo ciclo comece.

E o que tudo isso tem a ver com nossa liberdade?

Tudo.

Quando ignoramos que somos cíclicas, exigimos de nós uma constância que o corpo não pode oferecer. Nos forçamos a manter o mesmo rendimento todos os dias, a sorrir quando queremos chorar, a entregar quando só precisávamos recolher. Isso adoece. Nos desconecta. Nos aprisiona num ritmo que não é nosso.

Honrar o próprio ciclo é um ato de reconexão. De rebeldia doce. De autocuidado sagrado.

A mulher que conhece seus ciclos aprende a escutar o próprio corpo, a organizar sua rotina com mais gentileza, a respeitar os altos e baixos como parte de sua natureza. Ela deixa de se ver como “instável” ou “dramática” e começa a se reconhecer como potente, intuitiva, mágica.

O sistema pode até querer que sejamos lineares. Mas a Lua que vive em nós se recusa a se aprisionar num relógio.

Um homem consegue criar até 300 milhões de vidas em apenas uma ejaculação, que pode acontecer várias vezes por dia.

São 300 milhões de possibilidades de vida lançadas ao mundo em segundos. Um potencial explosivo e incessante, que se renova dia após dia, sem pausa, sem limite.

Essa abundância é muitas vezes lida como poder. Como fertilidade. Como força criadora. Mas será mesmo?

Porque o homem pode gerar vida — mas ele não sustenta a vida.

Uma mulher consegue gestar 5 vidas, raramente, a cada nove meses.

E ainda assim, a sociedade quer que você aja, se inspire, crie, geste, dê a luz e faça crescer algo em oito horas de trabalho.

A cultura patriarcal preferiu glorificar a semente em vez do solo. Idolatrar o número em vez da qualidade. Reverenciar a velocidade da produção em vez da profundidade do processo. O sistema quer nos fazer esquecer que somos portais. Que temos o poder de dizer sim ou não à vida. Que nossa fertilidade não é uma obrigação, é uma dádiva. Uma escolha. Um caminho. E que recusar esse papel também é um ato político.

Porque não gestar também é liberdade. E liberdade é algo que o patriarcado teme. Um homem não existe sem uma mulher. A mulher também não existe sem o homem. Devia ser sobre equilíbrio, mas se torna sobre dominação no momento em que respiramos pela primeira vez neste mundo.

Ele não são “tão dependentes quanto”, eles são mais dependentes de nós do que o contrário, mas nos fizeram acreditar no oposto a vida toda.

Somos as guardiãs do ritmo da Terra. E só cria quem tem tempo, espaço e profundidade pra sustentar.

Mulher, é hora de acordar.

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